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Liberdade de expressão: modo de usar, segundo André Marsiglia

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É absolutamente estranha a ideia de que o Estado, por meio de seus poderes, defina o que é e como usar a liberdade de expressão. Aquele contra quem um direito é exercido não pode dizer como fazê-lo. O limite é a ponderação entre a Constituição e o código penal.

A Era Moderna parece ter assentado bem a ideia de que o exercício da liberdade em uma sociedade não pode ser total e irrestrito, sob pena de vivermos como animais irracionais soltos na selva. E animais não são livres, não escolheram viver daquela forma. O ser humano é o único capacitado a fazer a escolha racional pela liberdade, pagando o preço de se adaptar a uma vida com leis, regras, limites. Jean-Jacques Rousseau chamava a isso de renúncia à liberdade natural em favor da comunidade.

Acontece que o Estado deixou há muito tempo de ser um projeto comunitário, para se tornar símbolo de opressão. Todas as revoluções ocidentais modernas, incluindo a Francesa, contam a mesma história: insatisfeitos se juntando contra o Estado poderoso e opressor, em busca de direitos individuais.

Das revoluções surgiram os direitos fundamentais clássicos: de herança, de propriedade, de reunião, de associação e de se expressar livremente. Surgiu a liberdade de imprensa. Direitos que eram tidos por fundamentais – e ainda o são no texto de muitas constituições modernas, como a brasileira, por exemplo –, porque eram aqueles diante dos quais o poder estatal deveria parar.

A liberdade de expressão, portanto, surge como um direito contra o Estado, o direito de se indignar por meio do discurso contra a opressão estatal. Por isso, é absolutamente estranha a ideia de que o Estado, por meio de seus poderes, defina o que é e como usar a liberdade de expressão. Aquele contra quem um direito é exercido não pode dizer como esse direito deve ser exercido. Seria o mesmo que colocar na mão do agressor a medida do que vem a ser a agressão.

O Estado deve apenas positivar nas Constituições a existência da liberdade de expressão e agir para evitar que os discursos sejam coibidos. Esse é o verdadeiro papel do Judiciário em relação ao tema: ser o guardião do discurso protegido constitucionalmente e auxiliar na luta contra a censura.

Mas, se ao Judiciário cabe garantir o discurso, a liberdade de expressão não teria limite? Sim. O limite é a lei, a necessária ponderação entre as demais normas fundamentais da Constituição e as previsões do código penal para crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação. E, ao interpretar a lei, devemos ter em mente que a liberdade de expressão esbarra em seu limite quando deixa de ser discurso.

Isso pode ocorrer quando o que é dito se converte em ação. Há um curioso exemplo a esse respeito, utilizado pelo famoso juiz Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte americana. Ao julgar um caso no início do século XX, ele observou que, se um ator em cima de um palco de teatro, encenando uma peça, gritar “fogo”, isso é discurso. Já se uma pessoa qualquer arrebentar a porta de entrada do teatro e gritar “fogo”, assustando todos e causando danos, é ação, e ele não está coberta pela liberdade de expressão, pois perdeu sua natureza discursiva.

Outro limite importante a balizar o discurso é pregar a favor da extinção do outro ou, ainda, a favor da intolerância com a existência do outro, tal como ele se entende no mundo. Daí não serem protegidos pela liberdade de expressão ataques homofóbicos, racistas e antissemitas. A extinção do outro pressupõe o fim do debate e a voz única – autoritarismo que a liberdade de expressão se propôs a combater, ao nascer em oposição à opressão estatal.

Não é por outra razão que o deputado federal Daniel Silveira mereceu ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Ele ameaçou os ministros de agressão física. Tanto faz se de brincadeira ou não, ameaça é igual a gritar “fogo” no teatro, um passo nítido em direção à ação, que não pode ser entendido como discurso.

No entanto, as demais alegadas agressões verbais do deputado contra os ministros e contra o Supremo Tribunal Federal, que inflaram sua pena a exagerados quase nove anos, decerto não pretenderam a extinção de ninguém e não violaram a liberdade de expressão. O ridículo foi tamanho que durante seu julgamento chegou a ser lido, sob risos gerais, um documento que relatava que o ministro Alexandre de Moraes havia sido chamado por Daniel Silveira de “cabeça de ovo”.

O deputado também foi irregularmente impedido de assistir a seu próprio julgamento e já havia sido coagido anteriormente a colocar tornozeleira eletrônica sob abusiva pena de multa de 15 mil reais e bloqueio de suas contas bancárias. Tudo isso tramitando dentro do famigerado inquérito conhecido como das Fake News, no qual os ministros são, ao mesmo tempo, a vítima, o investigador e julgador.

Mas como chegamos a isso? Como o Judiciário, no lugar de assegurar a liberdade de expressão, tornou-se aquele que edita textos da imprensa, retira discursos do ar, rege com a batuta da censura?

Quando aceitamos que o Supremo Tribunal Federal profira decisões políticas  – e não apenas técnicas – em nome da defesa de valores democráticos, os valores democráticos já estão perdidos. Não existe democracia quando o povo delega sua autonomia e já não é capaz de escolher.

Basta vermos como as leis, as instituições e os tentáculos do Estado na sociedade civil ditam normas que pretendem ensinar ao professor como ensinar e aos pais como serem pais; basta vermos como as redes sociais, suas políticas e comitês internos nos controlam, dizendo o que podemos e não podemos dizer em suas plataformas — ou, ainda, como certas agências de checagem de fake news ambicionam nos guiar a ler, ver e ouvir aquilo que entendem por adequado. As reações contraditórias demonstradas pelos usuários a respeito da liberdade de expressão no Twitter, imediatamente após sua aquisição por Elon Musk, servem de termômetro da nossa dependência e subserviência.

É nesse contexto também que o Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, cada vez mais se arvora a nos dizer que a liberdade de expressão deve ser aquilo que eles acham que tem de ser, em defesa dos princípios democráticos. Walter Lippmann, em seu ótimo livro Opinião Pública, já mostrava o quanto a defesa da democracia pode ser falaciosa. Dizia que expressões como “o mundo tornou-se seguro para a democracia” soavam vazias, pois frases que eram capazes de significar quase tudo logo passavam a significar quase nada.

Frágeis que estamos, aceitamos que o Estado – talvez aceitemos que qualquer um – nos acalme, bastando a promessa de que nos protegerá desse complexo mundo em que vivemos. O preço disso, caro leitor? Nossa liberdade. Se a entregamos para que cuidem dela por nós, não haverá razão para pensarmos em um modo de a usar, porque ela não estará mais conosco.

Publicado na revista Crusoé.